Entidade se manifestou perante a segunda instância respondendo a recurso da Vale com uma série argumentos que apontam benefícios da via coletiva para busca das indenizações individuais
Na última sexta-feira, 22 de março, o Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MPMG) se manifestou perante a segunda instância do Poder Judiciário mineiro para responder a um recurso apresentado pela Vale. Essa manifestação do MPMG dá continuidade à discussão que tem sido feita na ação coletiva sobre a indenização dos danos individuais das pessoas atingidas, tema de extrema importância para os territórios severamente impactados pelo rompimento da barragem da Mina Córrego do Feijão.
Ocorre que a Vale tem se posicionado contrária à liquidação coletiva dos danos individuais e, por isso, apresentou recurso contra a decisão de primeira instância do Dr. Murilo Silvio de Abreu que determinou o início dessa fase processual. A mineradora defende que cada pessoa que se sinta lesada pelo rompimento busque, por si só, a justiça para solicitar indenização pelos prejuízos individuais que tenha sofrido, como a perda de trabalho e renda, perda de áreas produtivas, de maquinário, comprometimento de imóveis, destruição de projetos de vida, adoecimentos e despesas com tratamentos de saúde, dentre outros.
O MPMG, por sua vez, vem defendendo que a estratégia mais justa para lidar com a questão dessas indenizações é através da liquidação coletiva dos danos individuais. O posicionamento do Ministério Público aponta que o tema deve ser trabalhado e resolvido dentro do processo coletivo que tramita contra a Vale, sem deixar que as pessoas atingidas tenham que enfrentar, sozinhas, a mineradora em processos individuais.
A função da liquidação coletiva dos danos individuais será a de determinar quem são as pessoas que sofreram prejuízos individuais, quais são esses prejuízos e quanto vale cada um deles. Assim, será possível construir parâmetros justos de indenização, aplicáveis à toda a Bacia do Paraopeba, evitando que haja grandes diferenças nos valores pagos pelos mesmos tipos de dano, e contribuindo para que as pessoas lesadas consigam fazer provas de seus prejuízos.
Cabe relembrar que o MPMG exerce a função de substituir as pessoas atingidas na ação coletiva, e a defesa desse tipo de liquidação de danos individuais está em concordância com o desejo da população prejudicada, que enfrenta uma série de vulnerabilidades sociais e econômicas que dificultam seu acesso à justiça de maneira individualizada.
Argumentos apresentados pelo MPMG
Na resposta ao recurso da Vale, protocolada nesta sexta, o MPMG apresentou os seguintes argumentos ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais para defender a liquidação coletiva dos danos individuais:
- A Vale ignorou os alertas de precaução e prevenção quanto à segurança das estruturas de suas barragens, e tal negligência culminou em desastres-crimes como os de Mariana/MG e Brumadinho. Por isso, não é justo que a própria causadora do rompimento determine quem é atingido e quanto vale cada dano a ser pago por ela.
- As graves consequências do rompimento não se restringem ao município de Brumadinho e se estendem por toda a Bacia do Paraopeba, em uma complexa rede de danos, com violação de direitos individuais tanto materiais – isto é, relacionados a perdas econômicas – quanto imateriais – relacionados aos prejuízos emocionais e psíquicos, aos quadros de ansiedade, depressão e suicídio.
- O número de pessoas atingidas pelo rompimento é alto e é maior do que o número de beneficiários do Programa de Transferência de Renda (PTR) porque os critérios para acessar esse programa são mais restritos do que os critérios para a definição legal de pessoas atingidas por barragens, contida nas Lei Estadual 23.795/2021, e da Lei Federal 14.755/2023. Ou seja, o fato de não receber o PTR não quer dizer, necessariamente, que a pessoa não tenha sido prejudicada.
- Para a resolução da questão do pagamento de indenizações individuais, devem ser observadas as leis específicas que tratam da proteção dos direitos das pessoas atingidas por barragens: a Política Estadual dos Atingidos por Barragens (Lei 23.795/21) e a Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (Lei 14.755/2023).
- Em razão da complexidade dos danos e do alto número de pessoas atingidas, a perícia judicial é necessária durante a fase processual de liquidação para identificar os sujeitos atingidos e seus prejuízos, valorar estes prejuízos e determinar como eles podem ser comprovados para o recebimento da respectiva indenização.
- As perícias realizadas até o momento pelo Comitê Técnico Científico da UFMG não são suficientes para a identificação da totalidade de danos causados pelo rompimento, e não permitem que as pessoas atingidas possam, desde já, solicitar a execução de suas indenizações, isto é, cobrar da Vale os valores que lhe são de direito.
- Para exemplificar a necessidade de novas perícias, o MPMG aborda o resultado da Chamada 03 executada pelo CTC/UFMG, que investigou danos em apenas 19 dos 26 municípios, excluindo os municípios às margens do Lago de Três Marias, além de não considerar os Povos e Comunidades Tradicionais, os familiares de vítimas fatais que não residem nos territórios atingidos e os danos relacionados à desvalorização imobiliária.
- As perícias complementares deverão ser executadas com a participação das pessoas atingidas, acompanhadas de suas assessorias técnicas independentes, de forma a atenuar a desigualdade técnica e informacional em relação à causadora dos danos, conforme determinado pela Política Estadual dos Atingidos por Barragens.
Defesa da inversão do ônus da prova
Além do debate sobre o melhor e mais justo caminho para que atingidos e atingidas recebam suas devidas indenizações individuais, o tema da inversão do ônus da prova também tem sido abordado no processo coletivo. A Vale recorreu da decisão do Dr. Murilo Silvio de Abreu que determinou a inversão do ônus da prova e impôs à mineradora o dever de “provar as refutações que fizer às afirmações das Instituições de Justiça, da Perícia e das Assessorias Técnicas Independentes que estejam lastreadas em laudos ou relatórios técnicos”, ou, ainda, “na experiência comum subministrada pela observação do que ordinariamente acontece”.
A mineradora argumenta que essa questão já havia sido decidida no processo, e que o juiz não poderia mudar o que foi anteriormente determinado. Contudo, em sua petição de resposta ao recurso da Vale, o MPMG defende que é possível sim determinar a inversão do ônus da prova nesse momento, visto que a liquidação coletiva de danos irá inaugurar uma nova fase do processo e, por isso, há permissão legal para que a questão do dever de provar os fatos seja rediscutida e repactuada.
Problemas do Termo de Compromisso
O MPMG aborda ainda em sua petição os problemas decorrentes do instrumento desenvolvido pela ré em conjunto com a Defensoria Pública de Minas Gerais para reparação de cunho individual: o Termo de Compromisso. Segundo o MPMG, apesar de o Termo definir alguns parâmetros para pagamento de indenização, o texto não determina com clareza quais são as pessoas atingidas aptas a recebê-la e, com isso, fica a cargo da própria Vale escolher a quem pagar.
Este Termo de Compromisso também estabelece que “conquistas coletivas acordadas extrajudicialmente ou determinadas judicialmente em sede de ação coletiva aproveitarão ao atingido, que terá direito à diferença.”. Isso quer dizer que, caso as pessoas atingidas venham a ter alguma vitória através do processo coletivo, que seja conquistada depois de o atingido ter feito acordo com a Vale, a mineradora terá que complementar a indenização inicialmente paga. Para o MPMG, essa cláusula do Termo contribui para o argumento de que ainda há necessidade de perícia no processo coletivo porque não houve um levantamento completo de danos.
O MPMG reconhece a importância do Termo, que foi divulgado logo após o rompimento, quando as pessoas precisavam de respostas rápidas, mas agora é o momento de qualificar e complementar as propostas de reparação, de modo que os valores previstos no Termo de Compromisso sejam considerados o mínimo indenizatório, ou seja, pessoas atingidas não podem ser indenizadas com menos do que lá está previsto.
Para o Ministério Público, tanto a possibilidade de fazer acordos com a Vale com base no Termo de Compromisso, quanto a possibilidade de processar individualmente a mineradora apresentam graves problemas para as pessoas atingidas. Qualquer solução que deixem as pessoas atingidas isoladas para negociar ou litigar contra a Vale irão as colocar em posição de desvantagem, em razão das disparidades técnicas e econômicas entre as partes. Além disso, a busca individual pela justiça pode sobrecarregar o Poder Judiciário mineiro, que terá que lidar com milhares de processos.
Pesquisa do Nacab reforça a via da liquidação coletiva
Estes elementos trazidos pelo MPMG reforçam a necessidade de um tratamento coletivo da questão. Para fortalecer estes argumentos, um estudo realizado pelo NACAB, que investigou sobre os processos individuais ajuizados contra a Vale, foi mencionado na petição. Este estudo indica que 75% das decisões de segunda instância destes processos são desfavoráveis às pessoas atingidas. A partir desse dado significativo, o MPMG reforça que não há resultados positivos quando demandas de alta complexidade são tratadas de forma individual. O caminho coletivo é o mais adequado para lidar com o elevado número de sujeitos de direitos que suportaram inúmeros danos violados, das mais diversas naturezas, conforme é o caso deste desastre-crime.
Audiência para início da liquidação coletiva
O MPMG encerra sua petição ponderando que a liquidação coletiva de danos individuais ainda está em fase inicial, e que as partes do processo, em conjunto com a perita UFMG, poderão fazer suas ponderações e sugestões sobre a criação de um sistema indenizatório simplificado.
Por fim, reforça a importância da designação de audiência para que as partes e a perita possam apresentar considerações iniciais sobre a metodologia da liquidação coletiva, conforme decisão do Dr. Murilo Silvio de Abreu, respeitado o direito das pessoas atingidas a participar do processo com apoio técnico previsto no art. 3º, VIII, da Lei Estadual 23.795/21.