OPINIÃO
MARINA OLIVEIRA E EDMUNDO ANTONIO DIAS
Agora já não há mais o barulho incessante dos helicópteros, nem as centenas de voluntários que caminhavam pelas ruas de Brumadinho. As pessoas atingidas pelo desastre, como a primeira autora deste artigo, vivem, um ano depois, uma rotina cotidiana de violações de direitos.
A Vale ainda não se deu conta da necessidade de reconhecer o protagonismo dos atingidos no processo de reparação, desrespeitando o princípio da centralidade do sofrimento da vítima. No período em que exerceu sensível e pioneira jurisdição na Corte Interamericana de Direitos Humanos, o juiz brasileiro Antônio Augusto Cançado Trindade enfatizou a posição central da vítima e “a inevitabilidade do sofrimento diante da crueldade humana.” Os recentes desastres ocorridos no país evocam essa assertiva.
No Brasil, o projeto de lei 2.788/2019, que institui a Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens —já aprovado pela Câmara dos Deputados e que agora tramita no Senado— dá a devida ênfase a esse princípio, essencial para que a reparação seja construída a partir da perspectiva da vítima (que é, afinal de contas, titular dos direitos violados). É quem sofreu a dor das mais variadas perdas, quem teve interrompidos seus projetos de vida, que pode dizer quais são as soluções aceitáveis para a reparação integral.
Parcela da população acredita que a Vale esteja cumprindo todas as suas obrigações. Não é para menos. A empresa gasta milhões de reais em propaganda. Dói. Dói viver no território e presenciar —como a primeira autora deste artigo— as violações de direitos das comunidades atingidas e, ao mesmo tempo, observar a realidade de ilusão criada pela mineradora. Quando eu, Marina, vejo os anúncios da Vale sobre a minha cidade, penso que, se a Vale está dizendo a verdade, a minha vida é uma mentira completa.
O desastre persiste. Onze famílias ainda esperam encontrar os corpos de seus familiares para vivenciar seus lutos. Centenas de agricultores não tiveram qualquer suporte até hoje. Alguns estão com suas hortas debaixo da lama. Outros não podem irrigar suas plantações com a água do rio Paraopeba ou de poços artesianos. Há aqueles que também não conseguem mais vender suas hortaliças, que não encontram mercado consumidor. Eu, Marina, e outros atingidos, vivemos na incerteza de uma contaminação que pode estar ocorrendo a conta-gotas.
Parte de Brumadinho hoje é abastecida por caminhões-pipa. O consumo de ansiolíticos e antidepressivos aumenta a cada dia. Há comunidades quilombolas atingidas, como a de Pontinha, no município de Paraopeba, que ainda não foram reconhecidas nem recebem o pagamento mensal emergencial que vem sendo efetivado para garantir os meios de subsistência para outros atingidos.
O que o trem, que chega sempre vazio e sai cheio de minério de ferro, deixa de benefícios reais para Brumadinho? Os trilhos que ele percorre remetem a relações históricas de colonialidade do estado de Minas Gerais com o setor minerário.
São 272 vidas (duas das quais sequer chegaram a nascer) que não puderam sobreviver a algo aparentemente tão impalpável como as metas de produção da Vale, mas a memória dessas joias reafirma, como há quase 50 anos alertou Carlos Drummond de Andrade em seu “Canto Mineral”, que é preciso virar a página das “minas esgotadas / a suor e ais”.
Marina Oliveira
Moradora de Brumadinho (MG) vítima da tragédia e articuladora social da Arquidiocese de Belo Horizonte para as comunidades atingidas
Edmundo Antonio Dias
Procurador da República em Belo Horizonte e membro da força-tarefa Brumadinho, do Ministério Público Federal[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]